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Na escuridão total: o que acontece quando simulamos nossa morte.

  • Foto do escritor: Doula do Fim
    Doula do Fim
  • 3 de ago.
  • 6 min de leitura

O dia em que me imaginei deitada num caixão


Eu fiquei parada diante da tela do meu notebook, olhando fixamente para uma fotografia chocante: um salão silencioso, forrado de madeira. Dentro dele, dezenas de pessoas estavam sentadas em caixões abertos, feitos de madeira crua. Vestiam roupas tradicionais, em tons claros, como se estivessem participando de um ritual funerário. Algumas tinham os olhos fechados, como em meditação; outras olhavam para o vazio, sérias, recolhidas. Sobre as mesinhas ao lado, havia velas acesas, lenços de papel e pequenos cadernos. A cena não parecia triste. Era solene, íntima, como um momento de reflexão diante da finitude da própria vida.


Ao ver aquilo, me perguntei: e se fosse eu ali dentro? O que eu sentiria ao fechar a tampa do meu próprio caixão, mesmo sabendo que logo ela se abriria? Eu conseguiria participar dessa encenação do meu próprio funeral?


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Confesso, essa imagem me acompanhou durante dias.



Um ritual real, mas não final


Logo eu pesquisei e descobri que essa prática existe. Na Coreia do Sul, algumas empresas oferecem o que chamam de experiência de funeral em vida, mas não é para quem está aproximando o fim da vida. É para as pessoas completamente saudáveis: estudantes, profissionais, aposentados. A proposta, que ganhou força nos anos 2000, é simples: você escreve sua carta de despedida para seus entes queridos, tira uma foto estilo retrato fúnebre, veste roupas brancas e... entra num caixão. O "defunto" também deve escolher a frase que será inscrita no túmulo e, em alguns lugares, as mãos são ritualmente amarradas com um laço branco. Os participantes ficam ali, encerrados.


Com a tampa fechada por alguns minutos, e um funcionário passando e batendo com martelo, imitando o fechamento do caixão, a experiência simula um último adeus, um pequeno intervalo de escuridão e silêncio onde, segundo muitos participantes, algo acontece. Eles relatam uma clareza súbita sobre o que realmente importa.


Estudantes que participaram do evento disseram que perceberam estar vivendo como se a vida fosse uma competição e que, depois do "funeral", passaram a enfrentar os desafios um de cada vez. Outros acrescentaram que é importante aprender e se preparar para a morte desde jovem.

"Depois da experiência no caixão, percebi que deveria tentar viver um novo estilo de vida", diz Cho Yong-tae ao sair do caixão. "Percebi que cometi muitos erros. Espero ser mais apaixonado por tudo o que eu fizer e passar mais tempo com minha família."


Na hora de fechar o caixão, um repórter relata que mudou de ideia e pediu para que não seja pregado. O funcionário, porém, ignorou, disse que a experiência "é melhor" se for cumprida até o fim. No escuro total durante meia hora, o jornalista contou que acabou adormecendo. Seus colegas de enterro, no entanto, disseram ter nascido de novo quando o caixão foi reaberto.


O dono de uma empresa cujo nome pode ser traduzido como 'Morte feliz' relata que a ideia veio depois de ele passar pela experiência de quase morte e reavaliar completamente a trajetória de sua vida até lá. Ele estudou por anos e completou doutorado em 'Morte e meditação'. Ele acrescenta que sentiu que providenciar essa oportunidade de 'meditação sobre a propria morte' para outras pessoas tornou-se uma missão de sua vida. A ideia se tornou popular, o empresario confirma que cerca de 3 mil coreanos escolhem fazer a experiência por ano.


Diferente da prática japonesa seizenzo, que surgiu em 1990 e está ganhando espaço no Ocidente como "living funeral" (funeral em vida), a experiência do funeral simulado na Coreia do Sul tem características distintas. Enquanto o seizenzo visa proporcionar despedidas familiares e celebrar a vida de pessoas que se aproximam do fim, o ritual coreano é uma experiência solitária, voltada para as reflexões internas do participante.


Na verdade, na Coreia do Sul, funerais simulados se tornaram comuns. Algumas empresas chegam a usá-los como programas de motivação, patrocinando a participação dos funcionários, mas a maioria das pessoas participa por conta própria.




Pensar sobre a morte: uma tradição milenar


A maioria de nós já pensou na própria morte ao menos uma vez. Em 2007, um estudo da University of Kentucky mostrou que, ao contrário do que se pensa, pensar sobre a morte não necessariamente aumenta a angústia, e sim pode aumentar o apreço pela vida.


Mas pensar na morte como prática estruturada existe há muitos séculos no Oriente. Para os budistas, lembrar da morte é prática espiritual. Os monges budistas fazem várias meditações específicas como maranasati ("atenção plena à morte") ou phowa, uma prática da morte consciente. Em monastérios da Ásia medieval, há registros de monges que construíam seus próprios túmulos ou participavam de cerimônias funerárias simbólicas, como forma de contemplar a impermanência.


Diversos filósofos ao longo da história também argumentaram que confrontar nossa finitude é essencial para uma vida plena e significativa. Sócrates via a filosofia como uma preparação para a morte, acreditando que quem compreende a finitude da vida desenvolve sabedoria e coragem. Os estoicos como Marcus Aurelius praticavam o memento mori - a meditação constante sobre a morte - para cultivar gratidão pelo presente e discernimento sobre o que realmente importa. Heidegger desenvolveu o conceito de "ser-para-a-morte", argumentando que apenas ao aceitar nossa finitude podemos escapar da existência inautêntica e viver com propósito genuíno.

A ideia é clara: lembrar que vamos morrer nos ensina a viver.



Rituais de morte e renascimento em outras culturas


Mas não são apenas reflexões, existem também rituais de morte simbólica em outras culturas Em muitas culturas indígenas e xamânicas, existem ritos de passagem que simulam a morte como um portal de transformação. Em algumas tradições modernas de xamanismo, sobretudo no México, nos EUA e na Europa, participantes passam por ritos contemporâneos de "morte simbólica" e renascimento. Nesses rituais, podem ser deitados no solo ou superficialmente enterrados para representar uma "morte interna" antes de renascer em transformação pessoal.


Esses ritos têm algo em comum: a compreensão da morte como parte do ciclo, não como seu fim. Muitos participantes relatam que enfrentar pensamentos sobre sua própria finitude durante essas práticas os levou a reflexões profundas sobre o sentido de viver."



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O que muda quando encaramos a morte?


Será que precisamos de um caixão para lembrar o que importa? 


Talvez não. Mas algo muda quando fazemos uma pausa real, corajosa, para olhar para nossa vida como se ela estivesse acabando agora. O que deixamos de dizer? O que deixamos de viver? Quem queremos abraçar? Essas experiências nos mostram que a morte não é o oposto da vida, mas faz parte dela. E, muitas vezes, a ideia de morrer é o que nos empurra de volta para a vontade real de viver.



E você? Entraria no caixão?


Essa pergunta ficou comigo desde que vi aquela imagem. Não como um exercício mórbido, mas como um chamado: o que ainda estou adiando na minha vida? O que quero mudar antes que seja tarde? 


Talvez eu não precise entrar num caixão para isso. Mas talvez, só talvez, um minuto no escuro real ou imaginado seja tudo o que precisamos para acender a luz por dentro.





Fontes:

  1. DEWWALL, C. Nathan; BAUMEISTER, Roy F. From Terror to Joy: Automatic Tuning to Positive Affective Information Following Mortality Salience. Psychological Science, v. 18, n. 11, p. 984-990, 2007.

  2. EASTER, Michael. The Secret to Happiness? Thinking About Death. Scientific American, 13 maio 2021. Disponível em: https://www.scientificamerican.com/article/the-secret-to-happiness-thinking-about-death/.

  3. KOREA BIOMEDICAL REVIEW. South Koreans learn to thank life by experiencing death. Seoul, 2019. Disponível em: https://www.koreabiomed.com/news/articleView.html?idxno=6225

  4. SOCIETY FOR PERSONALITY AND SOCIAL PSYCHOLOGY. How thinking about death can lead to a good life. ScienceDaily, 19 abr. 2012. Disponível em: https://www.sciencedaily.com/releases/2012/04/120419102516.htm.

  5. THE SWADDLE. South Korean Fake Funerals Show Thinking About Death Can Make Living Life Better. Mumbai, 2024. Disponível em: https://theswaddle.com/south-korean-fake-funerals-show-thinking-about-death-can-make-living-life-better/.

  6. KIM, Daewoung; CHOI, Youngseo. Dying for a better life: South Koreans fake their funerals for life lessons. Reuters, 6 nov. 2019. https://www.reuters.com/article/lifestyle/dying-for-a-better-life-south-koreans-fake-their-funerals-for-life-lessons-idUSKBN1XG037/

  7. CRABBÉ, Roel. Sacred Burial Ritual: The Toltec Earth's Embrace Ritual. Orval: Roel Crabbé Shamanic Practice, 2024. Disponível em: https://www.roelcrabbe.com/sacred-burial-ritual/

  8. NORTHERN DRUM. Burial Ceremony. 24 out. 2024. Disponível em: https://northerndrum.com/burial-ceremony/

  9. TAYLOR, Nicholas. I was buried alive in a shamanic ritual: How my life was changed by being buried in Mother Earth for a night. The Guardian, 6 ago. 2009. Disponível em: https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2009/aug/06/nicholas-taylor-buried-alive?utm_source=chatgpt.com

  10. SOUTH CHINA MORNING POST. ‘Attending’ your own funeral: South Koreans fake their funerals for life lessons. YouTube, 11 jun. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PPTqP-ABJa4

  11. VICE. A Good Day to Die: Fake Funerals in South Korea. VICE (documentário/Vídeo), 16 jul. 2013 https://www.youtube.com/watch?v=ejEaJUEOhjs&t=944s

 
 
 

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